Érima de Andrade
Outro dia, lá no consultório, assisti uma filha, entre aliviada e raivosa, cobrar o atraso da mãe. Explico: no nosso corredor, bem na nossa frente, tem uma academia de balé. Algumas mães deixam suas filhas na aula de dança enquanto fazem yoga no nosso Espaço.
A filha fez a aula, acabou e ficou esperando a mãe que não chegava. Começou a aula seguinte e como a menina estava muito angustiada com a demora, a secretária da escola, atravessou o corredor com ela, para confirmar que a mãe não havia ido embora. Quando entrou, e viu a mãe na porta da sala conversando com a instrutora de yoga, colocou a mão na cintura e bem séria falou:
“- Você me deixou esperando um minuto! Já começou a outra aula e eu fiquei lá, um minuto inteiro esperando!” (sic)
Sabe Deus quanto tempo ela espera quando a mãe avisa “só um minuto” para que ela considere “um minuto” a “eternidade” de espera que a deixou tão ansiosa...
Lembrei da explicação dada por Vitor Quelhas as transformações que acontecem quando as crianças ouvem histórias: “Quando uma criança ouve com atenção o verdadeiro conto de fadas, tudo nela acompanha o conto: a acuidade neuro-sensorial, o ritmo cardíaco, a respiração.”
E não só quando ouve um conto formal. Qualquer coisa dita à criança, especialmente se ela estiver prestando atenção, cria todo um universo particular com todas as suas consequências.
É a fase do pensamento mágico e das projeções. Uma etapa fundamental do desenvolvimento infantil, pois é através dela que a criança tenta elaborar seus conflitos e organizar simbolicamente o mundo real.
Ana Maria Moratelli da Silva Rico explica que “estas fantasias têm a função de equilibrar emocionalmente a criança, permitindo a elaboração e dissipação da angústia e o aplacamento da ansiedade. Funcionam, inclusive, como um processo de autodefesa e de auto-afirmação.”
Como toda fase, um dia passa; para uns mais cedo, para outros mais tarde. De modo geral, por volta dos seis, sete anos de idade quando a criança desenvolve funções como a memória, a lógica e a inteligência.
Uma amiga da minha filha nos confidenciou que a primeira vez que comeu feijoada sem medo foi aqui na nossa casa. O irmão havia dito que a feijoada era feita com pé de porco, orelha de porco, rabo de porco e olho de porco. Como ela não sabia o formato do olho do porco, tinha medo de comer um achando que era grão de feijão. E só comeu aqui por que ajudou a fazer, e viu que não tinha um porco esquartejado como ingrediente.
“Mas o conto de fadas não diz o que é mentira ou verdade, é a criança que tem de lidar livremente com esse material.” Vítor Quelhas
Me lembro, com nitidez, que meu avô para me acalmar depois de eu ter engolido um caroço de laranja, explicou que era muito bom que isso tivesse acontecido. Disse ele que a semente ia virar uma arvorezinha na minha barriga e isso ia me ajudar a crescer.
Pronto! A partir desse dia, toda vez que um adulto comentasse na minha frente, com meus pais ou com meus avós, “nossa, como cresceram” se referindo só aos meus irmãos, eu tratava de engolir mais caroços.
“Os pais não devem participar ativamente do imaginário mirim, nem incentivar ou reprimir. Com o tempo vai declinando de intensidade até desaparecer por completo, como se nunca tivesse existido. Geralmente coincide com um maior domínio da linguagem e com a abertura de novos caminhos para a descarga emocional da criança.”Ana Maria Moratelli da Silva Rico.
“O crescimento, a aquisição das faculdades de inteligência, de emoção, de actuação, de acção pressupõem transformações. Alguma coisa tem de ser deixada para trás, é o crescimento dialéctico no conto de fadas. Não podemos continuar a ser Peter Pans e há coisas que temos mesmo de rejeitar para crescer. Os contos de fadas têm a ver com todos esses desafios, tratam arquétipos do crescimento: o medo, o confronto, a superação. O herói da história tem de arranjar soluções para tudo e a criança descobre possibilidades de enfrentar o seu medo como uma coisa natural.” Vítor Quelhas
Vítor Quelhas continua: “Eu, como toda a gente, faço montes de coisas. Mas uma coisa é certa: tenho tempo para contar contos de fadas ou para escutar alguém que diga que precisa de falar comigo. Sou capaz de rupturas para isso. Quando abdicamos de imprevistos, de espaços novos na nossa vida, começamos a caminhar para a morte. Porque não conseguimos introduzir vectores de criatividade, de novidade nas nossas vidas. O conto de fadas convence-nos de que somos capazes de criar essas rupturas.”
Vamos contar e ouvir histórias?
Érima, que texto fantástico!
ResponderExcluirParabéns!
Marcia Monteiro Garcia
988 TO
Obrigada! Bjs
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