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O Terapeuta Ocupacional como Agente da Saúde Mental
Érima de Andrade
(Insight Psicoterapia – Ano V – n° 49, São Paulo, Lemos, 1995)


“Mas os anjos não são deuses. Eles não podem tudo (...)
Os anjos não podem mudar a face do planeta nem
dirigir o curso do mundo. No máximo podem tornar
mais leve o fardo de uma ou outra vida, de um ou outro
momento de uma vida ou outra.

Um pouco como um terapeuta: essa disponibilidade
para ouvir, para tocar, essa presença discreta que pode
às vezes suscitar um novo começo – mas também essa
impotência para determinar, para resolver, para viver
no lugar de.”

Peter Pál Pelbart


O presente artigo se propõe a contar um pouco sobre a atuação da Terapia Ocupacional com pacientes psiquiátricos. Não pretende fechar o assunto, que tem várias linhas de pensamento, mas mostrar a forma de atuação com a qual, eu, por enquanto, me identifico.

A Terapia Ocupacional atua em três níveis, que são: prevenção, habilitação e reabilitação. Usa a atividade como ferramenta de trabalho.

O ser humano vive em cima da tríade cuidados pessoais, recreação e trabalho. Em cima dessas informações, traçamos objetivos gerais de tratamento mantendo a função que o paciente tem preservada, desenvolvendo o que está deficitário, estimulando a descoberta de novas habilidades. Isto é, manter o que tem, desenvolver o que precisa e estimular o novo.

Isto será mantido também como objetivo do paciente psiquiátrico.

Sempre que traçamos objetivos, colocamos treinamento de AVD, atividade de vida diária. Mas se o paciente psiquiátrico, não tem nenhum bloqueio articular, nem disfunção motora, para que colocar nos objetivos o treinamento de AVD?

Porque esse paciente, na maioria das vezes, se “desliga” de seu próprio corpo. Sua personalidade está tão fragmentada, que mesmo algo tão concreto como o corpo, passa-lhe despercebido. A estimulação do desenvolvimento das AVD’s faz com que o paciente se sinta útil, promove a independência de seus hábitos, dando-lhe uma maior resistência psíquica aos estímulos negativos.

A Terapia Ocupacional deve estimular o interesse do paciente por seus cuidados pessoais básicos e a disposição de realizá-los diariamente para que adquira autoconfiança, mantenha suas habilidades, conquiste a noção de responsabilidade inerente a todo ser humano. Ajudá-lo para que, aos poucos, se sinta capaz de cuidar de si, uma vez que o nosso principal objetivo é a independência do paciente.

Que atividades prescrever para esse paciente?

A atividade expressiva. Ela funciona como psicoterapia, como elemento de elucidação do diagnóstico, e como controle da evolução dos casos clínicos.

O paciente psiquiátrico está fragmentado. É difícil nesta situação verbalizar. Através do uso das mãos, da manipulação do material, é possível ao paciente, canalizar esta energia dispersa, expressar o que muitas vezes nem ele sabe, mas suas mãos transmitem.

É como, por exemplo, quando se está com lápis e papel nas mãos, falando ao telefone com uma pessoa extremamente chata, uma conversa monótona e desinteressante. Ao final desta conversa, descobrimos desenhos, rabiscos, figuras feitas totalmente ao acaso que expressam nossos sentimentos em relação a este telefonema.

Como o paciente psiquiátrico, nós também não sabemos explicar porque fizemos este ou aquele traço.

Acontece também, de no meio da conversa, você se dá conta de que está desenhando e começa a interferir conscientemente no resultado do trabalho. Sua mente volta à atenção para o que suas mãos estão fazendo. É o mesmo processo com o paciente. Num determinado momento, após organizar um pouco o seu tumulto interno, ele inicia um processo de conscientização do eu, começa a se reconstruir, a juntar seus fragmentos, a descobrir quem é.

Cabe ao terapeuta ocupacional, facilitar esta descoberta, oferecendo a ele diversas formas de expressão, materiais variados para que escolha o que melhor se adapte a sua necessidade. É totalmente improdutivo direcionar sua escolha. Ele vai buscar a melhor forma de se expressar porque ele precisa se expressar.

A escolha do material, a forma de utilizá-los são dados importantes a serem observados. Olhar somente a atividade depois de pronta deixa de lado toda uma conquista da forma de expressão, é desvalorizar uma informação fundamental, é minimizar qualquer progresso ou tentativa.

Permitir, sem interferir que o paciente se expresse, é o caminho da cura deste paciente.





Processo Criador
Érima de Andrade
(Insight Psicoterapia – Ano V – n° 49, São Paulo, Lemos, 1995)


A atividade expressiva transpõe para o real nossas possibilidades latentes. Parafraseando Gastón Bachelard, filósofo francês, “pesquisar a realidade positivada na imagem revela a energia da imagem que é a marca do psiquismo vivo”.

No ato criador, o homem mergulha na imensidão do inconsciente. Dá forma, e torna acessíveis a todos, as fontes da sua vida, seus sentimentos e desejos. É uma produção única e pessoal.

Alguns desejarão compreender essas imagens, quando na verdade, para entendê-las, é necessário senti-las.

O nosso mundo interno é povoado por medos, desejos, expectativas, aspirações, e por toda espécie de sentimentos, e prioridades interiores, que se tornam visíveis através das atividades expressivas. O homem pré-histórico já pintava nas paredes das cavernas como um meio de se preparar para a ação.

A criação espontânea é um meio de liberação de conflitos, fantasias inconscientes e de sonhos.

O poeta lírico alemão Rainer Maria Rilke (1875-1927), dizia que “as obras de arte nascem sempre de quem afrontou o perigo, de quem foi até o extremo de uma experiência, até o ponto que nenhum ser humano pode ultrapassar”.

Segundo Fayga Ostrower, artista plástica brasileira, “criar é tanto estruturar quanto comunicar-se, é integrar significados e é transmiti-los”.

Herbert Head, crítico de arte inglês, afirma que “a forma tem significação própria, isto é, corresponde a uma necessidade psíquica interior, expressando um sentimento, que não é necessariamente indeterminado; pelo contrário, é com freqüência, um desejo de refinação, clarificação, precisão, ordem”.

O processo criador desrespeita regras sociais, adequações de tempo e espaço. O ser criativo luta contra o já estabelecido, descobre novas formas, novos símbolos, novos padrões.

É um processo espontâneo, profundo e ameaçador, pois expõe a essência do homem.

Por isso, na tentativa de barrar a invasão de conteúdos inconscientes, por demais perturbadores, criam-se verdadeiros rituais. São defesas instintivas, que buscam a rigidez e o controle do traço, impedindo a livre expressão. O ritual funciona para manter a distância os perigos do inconsciente.





Tratamento com Uso de Atividades Expressivas
Érima de Andrade
(Insight Psicoterapia – Ano V – n° 49, São Paulo, Lemos, 1995)


Muitas vezes a comunicação verbal com o paciente psiquiátrico é tão difícil, que fica impossível o acesso do terapeuta ao seu mundo interno. As atividades expressivas facilitam o acesso ao mundo interior do psicótico, criam oportunidades para que as imagens do inconsciente encontrem forma de expressão.

Afirmações com as de Fayga Ostrower “criar é tão difícil ou tão fácil como viver. E é do mesmo modo necessário”; e de Carl Gustav Jung, “Se houver alto grau de crispação do consciente muitas vezes só as mãos são capazes de fantasia”, podem ser confirmadas diariamente nos setores de terapia ocupacional dos hospitais psiquiátricos.

Em 1948, Nise da Silveira constatou, empiricamente, o que se confirmou nos anos seguintes: “Nossa observação cada vez mais confirma que a pintura não só proporciona esclarecimento para processos patológicos, mas constitui igualmente verdadeiro agente terapêutico”.

O tratamento através da atividade era visto com descaso na nossa cultura fascinada pelo pensamento racional, pelo verbo, sobretudo quando a atividade ocorria em nível não verbal.

Freud considerava a atividade plástica insuficiente para a conscientização de sonhos e fantasias, porque considerava a expressão visual um acesso imperfeito à consciência, encontrando-se mais próximo dos processos inconscientes do que do pensamento verbal. Considerava o inconsciente um “caos ou caldeira cheia de pulsões em ebulição”. Lá estavam fervendo conteúdos reprimidos, buscando satisfação, recorrendo para isso a deformações e disfarces.

A psicologia junguiana afirma que através da atividade expressiva, mesmo que o paciente não tome consciência de suas significações profundas, as imagens projetadas do inconsciente, se tornam menos apavorantes, pois ficam despojadas de suas fortes e desintegradoras cargas energéticas, e mais tarde, podem se tornar até inofensivas.

Jung afirmava: “Basta que um paciente perceba que, por diversas vezes, o fato de pintar um quadro o liberta de um estado psíquico deplorável, para que ele lance mão deste recurso cada vez que seu estado piora. O valor desta descoberta é inestimável, pois é o primeiro passo para a independência, a passagem para o estado psicológico adulto”.

A atividade expressiva pode ser utilizada para reorganizar o mundo interno do paciente, e ao mesmo tempo para reconstruir a realidade. Para tanto, o doente recorre ao uso de ferramentas, o agente mecânico que executa o trabalho, mãos, pincéis, tesouras, etc., e materiais; tintas, papéis, cola e outros objetos consumidos na construção da atividade.

Mas os problemas dos pacientes psiquiátricos dilaceram o ser, e só com uso de ferramentas e materiais, esses problemas não serão resolvidos. Como afirma Lisete Ribeiro Vaz, terapeuta ocupacional do Rio de Janeiro: “É a presença afetuosa, atenta e disponível do terapeuta ocupacional, que pode promover um clima de confiança tal que conduza o doente à manifestação plástica de seus conteúdos internos”.

Em primeiro lugar, voltar à realidade depende de um relacionamento confiante com alguém, que represente um ponto de apoio, sobre o qual o paciente poderá fazer um investimento afetivo, relacionamento que se estenderá aos poucos, a contatos com outras pessoas e com o ambiente.

Dificilmente o tratamento será eficaz se o doente não tiver a seu lado alguém que represente um suporte afetivo. Se não houver investimento afetivo na atividade, não haverá tratamento ocupacional. É através dessas manifestações expressivas que teremos acesso ao mundo interno dos psicóticos, um mundo tão pouco acessível por abordagens lógico-discursivas.

As melhoras clínicas são o resultado da despotencialização de imagens aterrorizantes, que ao se expressarem plasticamente, repetidas vezes, desgastam sua carga energética. O mesmo recurso que utilizamos depois de um filme de terror, quanto mais falamos daquelas cenas apavorantes, menos medo sentimos.

A conduta terapêutica é deixar a mais ampla liberdade de expressão aos doentes. Diferentes materiais exigirão diferentes posicionamentos, ou atitudes, do paciente durante o processo terapêutico.

“A expressão espontânea é o núcleo da Terapia Ocupacional e através dela, a Terapia Ocupacional se distingue das demais áreas de tratamento e abordagem do ser humano”, afirma Lisete Ribeiro Vaz, em seu livro “A paixão de imaginar com as mãos”.

Tratar com atividade é tratar com a vida, vida é movimento que expressa energia e vivacidade, a vida é uma atividade incessante. Não é alienar o paciente, é inseri-lo, é possibilitar seu retorno à realidade.





Criatividade, Processo Criador e as Emoções que Permeiam a Criação
Érima de Andrade
(Insight Psicoterapia – Ano VII – n° 79, São Paulo, Lemos, 1997)

“Um ser humano é uma expressão da vida, que traz a luz e reflete o amor, em qualquer dimensão que ele resolva tocar, em qualquer forma que ele deseje assumir.

A humanidade não é uma descrição física, é uma meta espiritual. Não é uma coisa que nos é dada, é algo que conquistamos.”

Richard Bach

Esse trabalho tem por objetivo compreender os sentimentos que permeiam o processo de criação. Para tentar descrevê-los, utilizo além da pesquisa bibliográfica, as respostas livres dadas por vinte e dois entrevistados. Como optei por uma pesquisa qualitativa, com respostas abertas, meu universo de informantes, nas entrevistas realizadas, não tem nenhum compromisso estatístico.

Comecei esta pesquisa, pensando em comparar o conceito interiorizado de criatividade e de processo criador, de dois grupos distintos de pessoas, e para isso, escolhi pessoas que de alguma maneira estivessem ligadas a área da saúde ou da cultura. Pensava em coletar e comparar informações obtidas a partir das entrevistas feitas com essas pessoas, separando-as de acordo com sua área de atuação.

E por que saúde e cultura? Por serem duas áreas que transito com familiaridade, elas fazem parte da minha história.

O meu interesse inicial, não era apenas o de conhecer esse conceito que essas pessoas tinham interiorizado, e de que maneira usavam isso em suas vidas, mas era principalmente, o de tentar entender como elas viviam isso, que emoções permeavam seus processos criadores.

Ao ler sobre questões associadas à criatividade, não encontrei nenhuma bibliografia onde o processo criador fosse descrito a partir das emoções vividas por quem esta criando, e sim por um observador atento, aumentando dessa forma, minha necessidade de entender esse processo e de tentar preencher esse espaço vazio.

Busquei fundamentar o meu conceito interno de criatividade e processo criador, em autores que já estudam esse tema há alguns anos, e buscar em outros autores, informações sobre comportamento e emoções, tentando com isso, formar um quadro coerente entre as minhas idéias, os estudos já publicados sobre esses assuntos e as respostas dadas nas entrevistas.

Para esse trabalho, entrevistei vinte e duas pessoas, e pedi que me falassem sobre sua formação, sobre como entendiam a criatividade e o processo criador, e sobre como vivenciavam o seu processo criativo.

Desde o início das entrevistas, eu pensava no processo criador, como um processo também de construção e de organização da subjetividade, do mundo interno pessoal. Por isso, ao organizar esse trabalho, além dos capítulos que falam do conteúdo teórico da minha pesquisa e das repostas das entrevistas, coloquei um capítulo sobre processo criador e psicoterapia.

Aproveito para agradecer as respostas dadas por essas pessoas que tão generosamente me descreveram seus sentimentos no momento de criar.





Criatividade e Processo Criador - Teoria
Érima de Andrade
(Insight Psicoterapia – Ano VII – n° 79, São Paulo, Lemos, 1997)


Criar é considerado por muitos autores, como sendo uma característica humana, e a criatividade e os processos de criação, como estados e comportamentos naturais da humanidade.

Criatividade, portanto, não é considerada uma exclusividade do artista. Criar também não é a busca de formas inéditas, especiais, únicas. Criatividade é uma maneira pessoal de compreender e de relacionar os fenômenos que ocorrem em qualquer campo da atividade humana.

Considerar criatividade como sendo uma exclusividade da arte, é uma maneira deformada de perceber a realidade. É um vício de percepção considerar que criativo é o genial, o inédito, o exclusivo.

Criatividade é um comportamento inerente a condição humana, isto é, está por natureza inseparavelmente ligada à condição humana, a realidade da vida humana, onde o fazer diário pode ser uma das várias maneiras de criar.

Criar é mais do que uma atividade da vida diária, é quase uma necessidade da vida diária. Criamos o tempo todo, todos os dias, o dia todo. Criamos pelo prazer de criar, pela emoção de dar forma, pela necessidade de buscar novas alternativas, de dar conta de alguma situação inédita, totalmente imprevisível.

O nosso fazer diário esta repleto de situações, mais ou menos inusitadas, que nos fazem buscar uma nova maneira de agir. O nosso dia-a-dia é cheio de situações imprevistas, desconhecidas, novas, que exigem uma resposta imediata, que exigem justamente, atitudes criativas conscientes, e outras inconscientes.

Somos chamados a responder por situações tão díspares quanto à falta de luz na hora do jantar, ou uma crise de choro, aparentemente imotivada, de uma pessoa durante o atendimento.

Por isso, a criatividade não pode ser relacionada só a momentos de inspiração, limitada aos artistas, que se reconhecem como artistas, já que estou considerando que arte, todos nós fazemos, todo dia, o dia todo.

Fazemos arte quando preparamos uma refeição – a arte culinária; ou quando cuidamos de uma planta - a arte da jardinagem; ou quando ouvimos alguém – a arte de estar perto; e em qualquer outra situação da nossa vida em que nos entregamos por inteiro.

Fazer arte é a capacidade que temos de, dominando a matéria, pôr em prática uma idéia, é se entregar por inteiro a uma atividade, é fazer com sentimento, é uma produção única e pessoal. Não estou considerando, de maneira alguma, arte como sendo o domínio de uma técnica.

Criatividade não é um momento, ela é uma forma pessoal de estar na vida, e como disse Fayga Ostrower, pode ser “tão difícil ou tão fácil como viver. E é do mesmo modo necessário”.





Criatividade e Processo Criador – Teoria - continuação
Érima de Andrade
(Insight Psicoterapia – Ano VII – n° 79, São Paulo, Lemos, 1997)


Difícil porque o medo pode bloquear os processos de criação. O medo do novo, o medo do desconhecido, acaba por criar maneiras rígidas de agir, algumas vezes, obsessivas, que tornam o fazer uma rotina mecânica, e transformam a inteligência apenas num amontoado de informações armazenadas, sem nenhuma possibilidade de se relacionarem entre si.

Rollo May explica que, “a mecanização requer uniformidade, previsibilidade, e ordem; e o ato criativo, pelo simples fato de ser um fenômeno do inconsciente, original e irracional, representa uma ameaça à ordem e à uniformidade”.

A pessoa com medo, busca mecanizar sua rotina, torná-la o mais possível, previsível. Porque criar é lutar contra os limites, às vezes amplos, das nossas relações internas e humanas, que por mais amplos que sejam, são sempre limites conhecidos. É uma luta que requer coragem, coragem para enfrentar o novo, para suportar o impacto do desconhecido, para destruir o velho. Estou pensando coragem aqui, não como a ausência do medo, mas como a ação apesar do medo.

Para Marie-Louise Von Franz, “aquele que não puder suportar o impacto do desconhecido, naturalmente não é capaz de criar algo novo ou de permitir que algo novo surja, alguma coisa criativa”.

Para que algo novo tome forma, é necessário que o velho deixe de existir, da maneira como vinha existindo. Para Picasso todo ato de criação é antes de tudo um ato de destruição. Destruir a velha maneira de agir, para construir uma nova maneira de estar no mundo.

Ao criar, optamos por uma das várias alternativas possíveis, abrindo mão de muitas outras que, hipoteticamente, também existiam. É nesse sentido que todo construir é também um destruir. Por isso o criar pode causar tanto medo. Construir uma das opções é destruir todas as outras, abandoná-las para que aquela escolhida tome forma.

Por isso, todo ato criador pode ser, e geralmente é, acompanhado por um estado inicial de tensão, às vezes descrito como ansiedade, como angústia, como confusão, ou como a vivência de um caos interno. E o criar nasce dentro desse caos, na busca de ordem, significado, repostas.

Rollo May explica que, “estabelece-se uma disputa ativa no íntimo da pessoa, entre o pensamento consciente e a antevisão ou perspectiva que luta por nascer. Essa percepção interior nasce, finalmente, em meio à ansiedade, culpa, regozijo e gratificação, necessariamente associados à efetivação de uma nova idéia ou imagem”.

É uma “montanha-russa” de sentimentos, ansiedade, culpa, regozijo, gratificação.

Para Fayga Ostrower, “criar representa uma intensificação do viver, um vivenciar no fazer; e, em vez de substituir a realidade, é a realidade; e uma realidade nova que adquire dimensões novas pelo fato de nos articularmos, em nós e perante nós mesmos, em níveis de consciência mais elevados e mais complexos”.

Criar não é uma fuga, é a transformação da realidade numa nova realidade. O nosso fazer é sempre um fazer significativo, é uma intensificação, e por isso reflete as nossas emoções.

“Cada uma das minhas pinturas é uma página do meu diário íntimo e tem validade como tal”, reconhecia Picasso.

Harold Osborne, em seu livro “Estética e Teoria da Arte”, descreve o homem como sendo um ser social, que necessita do ato criativo, mas também da compreensão do outro ao seu ato criativo. Fala do alívio da tensão quando no expressamos abertamente, e da satisfação sentida pela maioria dos homens, quando além de se expressarem, conseguem comunicar o sentimento, uma satisfação acompanhada por um alívio. Ele explica que:

“A sabedoria popular acredita, e nisso concorda a maioria dos psicoterapeutas, que, nas situações emocionais, o ato de expressão relaxa a tensão nervosa e traz alívio à pressão emocional refreada. Nós nos sentimos menos tensos quando nossos sentimentos se manifestam abertamente. Por conseguinte, tanto em conexão com a criação artística, como em outras atividades da vida, costumamos dizer que o homem “se expressa” ou “expressa seus sentimentos” ao entregar-se a alguma forma de atividade oriunda de um impulso profundamente arraigado, que o deixa apaziguado e satisfeito. Como os homens são seres sociais, a maioria das pessoas obtém maior satisfação quando a expressão transmite a outros uma consciência de sua emoção e induz os outros a comparti-la harmoniosamente. O elemento de comunicação pode aumentar a eficácia da expressão trazendo alivio; a incapacidade de comunicar-se pode acarretar um sentido de frustração”.

Comunicar vai além de expressar. Você pode se expressar sozinho, mas para se comunicar você precisa do outro. E para que a comunicação ocorra, existir uma mensagem, uma expressão, não é o suficiente, ela precisa ser decodificada por quem a recebe. Quem envia a mensagem a envia codificada. Todo ato criador é uma mensagem esperando alguém que a decodifique. O código pode ser a postura corporal, o figurino, uma expressão plástica, um discurso, um objeto construído, etc.

Mas a comunicação só acontecerá quando alguém decodificar essa mensagem, só decodificando-a será possível saber o que o codificador-criador pretendia comunicar. Por exemplo, as letras não significam nada para quem não sabe ler. Elas são um código, e como todo código não pode ser decodificado por quem não as conhece. Neste caso, para que essa mensagem seja decodificada mesmo por quem não sabe ler, elas deverão ser codificadas de outra forma, por meio de figuras, ou cores, para que possam ser compreendidas, decodificadas, até por quem não conhece as letras.

O ato criador pode ser dividido em dois momentos distintos: o primeiro corresponde ao ato de fazer a obra; o segundo, ao momento em que a obra é mostrada, compartilhada. Sendo assim, podemos pensar que o ato criativo envolve dois momentos: o da produção e o da comunicação.

O fazer não parece suficiente, ele precisa vir acompanhado do mostrar. Nesses dois momentos, são vivenciados dois tipos diferentes de emoção, que se completam e se tornam necessários para quem está criando.

No primeiro momento, o da produção, se vive a emoção de estar criando, de estar experimentando, de estar captando novas possibilidades, formulando novos contextos, novas formas de relacionar conceitos, percepções, sentimentos, objetos, etc. O segundo momento, o da comunicação, é o da emoção de mostrar a obra, divulgá-la, oferecer para que seja olhada, comentada, criticada, acolhida, aprovada, rejeitada, enfim, para que seja dividida com o outro, qualquer que seja esse outro.

O ato de criar não estará completo enquanto a obra, seja ela falada, escrita, esculpida, sentida, não puder ser apreciada por um outro além de seu próprio criador. A obra precisa ser comunicada, compreendida, para trazer uma gratificação plena.

O processo criador passa a ser considerado completo quando ocorre essa decodificação, passa a ter sentido quando um outro o decodifica e consegue compreender a intenção da obra produzida.





Processo Criador e Psicoterapia
Érima de Andrade
(Insight Psicoterapia – Ano VII – n° 79, São Paulo, Lemos, 1997)


Criar também é construir uma identidade, um estilo pessoal de estar no mundo. A partir dessa idéia, procurei relacionar as emoções vividas no processo criador, com as emoções que eu vivi durante o meu processo de psicoterapia.

Percebi que vivi no processo terapêutico os mesmos momentos de produção e comunicação descritos antes no processo criador. No processo terapêutico eu vivi a emoção de estar construindo uma mudança no meu estilo de vida, buscando melhorar a qualidade das minhas relações pessoais internas e externas, acompanhada, do que me pareceu ser, uma necessidade vital de que o outro compreendesse essa minha mudança.

Procurei também associar com o que acontece na Terapia Ocupacional. A Terapia Ocupacional atua nos níveis bio, psíquico e social. Usa a atividade como tratamento, é a nossa ferramenta de trabalho. Baseados em informações colhidas junto à pessoa em atendimento, traçamos objetivos gerais de tratamento, mantendo a função que está preservada, desenvolvendo o que está deficitário, e estimulando a descoberta de novas habilidades, nos cuidados e relacionamentos pessoais, no laser e repouso, e na vida profissional.

Se pensarmos na pessoa em atendimento terapêutico ocupacional, como sendo o codificador, a atividade, como sendo a mensagem, e o terapeuta ocupacional como o decodificador, entenderemos a eficácia desse tratamento.

Asheley Montagu explica que, “é bem sabido, por exemplo, que a pessoa ansiosa, seja ela bebê, criança ou adulta, tende a enrijecer seus movimentos, a tencionar seus músculos, a erguer demasiadamente os ombros, e até mesmo a ficar com o olhar penetrante”.

Através desse exemplo, pode-se projetar o quanto toda ação é passível de decodificação. Esse é um código facilmente decodificado, mesmo quando não se percebe que esta mensagem está sendo enviada, inconscientemente se espera que ela seja entendida, e que o sentimento seja respeitado.

Esta é, de meu ponto de vista, a principal diferença entre atividades como pintura, artesanato, recreação, e o trabalho da Terapia Ocupacional.

O terapeuta-decodificador vai estar sempre tentando entender o significado das mensagens enviadas. A postura, o discurso, a obra produzida, são partes da história de vida de cada um. E mesmo que num primeiro momento, decodificar não seja possível, o terapeuta-decodificador vai estar por perto, tentando aprender esse novo código, olhando para cada um como um ser único, com códigos parecidos, mas individualizados; lembrando que atitudes, interesses e habilidades diferem de pessoa para pessoa, e o que é a melhor maneira para um, pode ser a pior maneira para outro.

É um fato indiscutível que as pessoas têm diferenças entre si, necessidades diferentes, são códigos diferentes, e tentar impor um padrão pré-concebido de como aprender com as mesmas coisas, como mudar com o mesmo ritmo, como criar da mesma forma, com a mesma eficiência, com o mesmo interesse; cria ressentimentos, frustrações e insegurança.

Quando não se sentem compreendidas nas suas necessidades afetivas mais básicas, elas vivenciam uma sensação de não ser importante para as outras pessoas, e quem sabe nem para si mesma, e deixam de pensar em como realmente são, e passam a pensar em como deveriam ser, e o que fazer para corresponder aos padrões e expectativas dos outros. Ser “eu mesmo” é o núcleo de uma vida saudável.





Processo Criador e Psicoterapia - continuação
Érima de Andrade
(Insight Psicoterapia – Ano VII – n° 79, São Paulo, Lemos, 1997)


As necessidades afetivas básicas de todo ser humano são: o amor, como afeição profunda, dedicação; a aceitação que não significa que concordamos com o comportamento ou com as faltas da outra pessoa, significa simplesmente aceitá-la da maneira que é; a aprovação, que é o consentimento, a autorização; a proteção como acolhimento, preservação do mal, consideração, apoio, defesa; a independência com autonomia; e conhecer os limites de seus poderes - ouvir e ser ouvido, opinar e ser considerado, chamar a atenção e ser observado, entre outras formas de diálogo.

Por isso, reconhecer um sentimento é tão importante quanto entender um discurso. Pensar na expressão verbal, lógica, organizada, como a única forma de se expressar, limita muito as possibilidades de comunicação; uma boa imagem “fala” tanto, ou mais, do que um texto de mil palavras.

O crescimento pessoal, seja através de um atendimento terapêutico, seja por meio de auto-observação, é feito aos poucos, com consciência, persistência, assiduidade e paciência. As mudanças no comportamento, na forma de se relacionar, e de se expressar, devem acontecer de maneira voluntária, espontânea, e a mais serena e tranquila possível, partindo de um desejo, exclusivamente, pessoal.

Impor um caminho para mudanças é ignorar esse desejo, e isso pode ser doloroso e ineficaz.

A intenção, e a direção, dessas mudanças devem ser respeitadas, são opções íntimas e pessoais, e o terapeuta-decodificador funciona apenas como um meio para que cada um trabalhe por si próprio, com liberdade para optar pelo que quer, e pelo que não quer, em cada momento.

“Qualquer ato que afete o comportamento de outra pessoa cria responsabilidade”. (Harold Anderson). E a responsabilidade, e a opção, pela mudança pertencem à pessoa em atendimento, e não ao terapeuta.

Mira y Lopes explica que, “os medos, os ressentimentos, as frustrações e os desgostos de muitas criaturas serão diminuídos à medida que se compreendam melhor e adquiram uma visão mais objetiva e serena do que realmente são, do que podem chegar a ser e de como devem proceder para esculpir em seu temperamento o melhor caráter possível com os recursos que tenham a disposição”.

Oferecer várias formas de se expressar, permitir que experimente várias possibilidades, que crie várias alternativas, é uma das maneiras de estimular a escolha de um novo caminho, possibilitando novas descobertas, e consequentemente, um conhecimento maior de suas próprias potencialidades.

Aos poucos a pessoa se sente mais capacitada para enfrentar suas dificuldades, para ser menos passiva diante da vida, e para ter uma maior independência em suas relações.

Edith G. Neisser, no seu artigo “Capacidade Criadora na Vida Diária”, explica que:

“A criação é um bom remédio. Há muitas espécies diferentes de valores na capacidade de apreciar o trabalho criador, para a criança de hoje e para o adulto que ela vai ser um dia. Primeiro que tudo, agora e mais tarde, ela pode encontrar alívio para a tensão e um grande descanso no trabalho de criação, quando as circunstâncias excluem outras satisfações. Há sempre muitas oportunidades nas quais as pessoas jovens ou velhas, enfrentam angústia, responsabilidades pesadas, ou mesmo inatividade forçada, e então, força e coragem são encontradas na música, pintura ou até em habilidades criadoras mais humildes”.

E continua num outro trecho:

“O indivíduo jovem ou velho, que pode tomar parte com prazer em atividades criadoras, achará a vida mais interessante, mais satisfatória e, provavelmente menos fatigante”.

E completa:

“Do ponto de vista da personalidade formada e saúde mental, é muito melhor participar com elevo e gosto, mesmo em espetáculos maus, do que ser sempre um simples espectador, ainda na mais inspirada representação.”

Isto é o que nós, terapeutas ocupacionais, propomos, quando afirmamos que não estamos buscando a perfeição da técnica numa atividade, e sim, a participação interessada das pessoas nas atividades propostas.

Por tudo isso, não me parece que seja muito produtivo forçar, exigir que alguém crie com hora e lugar marcado, porque a criatividade não respeita normas ou convenções sociais, ela simplesmente acontece. Regularidade na oferta de possibilidades de criar, sim; a obrigação de criar, não.

Mas se não é possível forçar a criatividade, pelo menos, é possível estimular a inspiração e talvez seja essa a nossa principal ferramenta, e função, como terapeutas ocupacionais: estimular a força criadora que se manifesta em todos nós através de pensamentos, emoções e ações, e que pode melhorar as nossas relações com as pessoas, com o trabalho, e com todas as áreas da nossa vida.

E é sempre bom lembrar que a comunicação é uma via de mão dupla, e o terapeuta ocupacional também envia suas mensagens. O seu cuidado, sua atenção, seu interesse, seu conhecimento, aparecem claramente, o tempo todo, e independente de qualquer coisa que seja feita, estes serão transmitidos.