domingo, 9 de outubro de 2016

A entonação da coisa

Érima de Andrade

Quando fui fazer um treinamento em São Paulo, minha filha se preocupou em me avisar, para que eu não estranhasse, que
na cidade as pessoas se tratavam só por uma sílaba do nome.

E de fato, é assim mesmo. Um dia, num intervalo, na sala do cafezinho, rolava uma conversa com a Má, a Rê, a Sô, a Li, a Van, e tudo bem, já havia confirmado que era uma realidade, se tratam só por uma sílaba do nome.

Mas, o que eu não esperava ouvir, era uma história da Má com a Má. E era tanto Má na conversa que me perdi. Perguntei se elas não se confundiam com as Más. “Não, sempre que é a Má, Márcia, é um Má assim. E a Má, Marisa, é um Má assim.”

Havia uma sutileza na entonação, que, confesso, tive muita, muita dificuldade para perceber. Realmente, entonação muda tudo.

O texto do S. Leite sobre Coisa, também me faz pensar na sutileza da entonação. Diz ele:

O verbo coisar, pelo menos em Portugal, é dos mais úteis que há. E a sua utilidade prende-se, obviamente, com a fantástica versatilidade do substantivo coisa, que por ser tão versátil se usa também no masculino, pois há coisas e coisos, dependendo, claro, do que se pretende designar, em cada caso.

Quando no discurso (convém que seja oral) optamos por fazer uso da coisa, a indeterminação daquilo que se pretende designar pode estar relacionada com a intenção de não explicitar o que é, ou quem é, mas sente-se sempre a enorme vantagem que essa mesma indeterminação representa, dado que as coisas nem sempre são fáceis de definir, sobretudo quando temos de nos exprimir depressa.”


E continua: “uma coisa pode ser um objeto, uma ideia, um sentimento, uma criatura animal, vegetal ou mineral. Pode designar tanto uma ferramenta como uma pessoa de cujo nome não nos lembramos, uma dor, uma atitude, um assunto, ou mesmo uma ação que cabe ao ouvinte decifrar, de acordo com o contexto, a expressão facial de quem utiliza a expressão, o seu tom de voz e sabe-se lá que outros sinais.”

Exatamente! Coisa serve para tudo. “Que coisa linda!” pode ser um elogio de fato, ou pode ser a reação sarcástica a uma cena, por exemplo, de um fogão com o leite fervendo para fora da panela.

A coisa é o melhor exemplo de como a entonação muda tudo. Não adianta você dizer as palavras mais doces que você conhece, se o seu sentimento não for uma doçura, não vai fazer sentido para quem ouve.

Para uma comunicação efetiva, o que você fala tem que estar alinhado ao que você sente. Ninguém acredita em quem, orgulhosamente, é humilde, e trata a todos com arrogância. Não convence...

Todo o seu discurso, e as suas atitudes, são influenciados por seus sentimentos. A energia que você transmite é a do sentimento, e não da fala, ou da sua ação. Por isso os atores estudam tanto, para transmitir, com verdade, o sentimento do personagem, que nem sempre é o mesmo da pessoa que está atuando.

Mas na vida você não é um ator. E se seu sentimento não está alinhado a sua atitude, talvez, seja o momento de você começar sua jornada de autoconhecimento. Ou por auto-observação, ou com ajuda de terapeutas.

Reconhecer o que sente é o primeiro passo para alinhar suas emoções com suas ações. E pode ser que você não goste do que está sentindo. E tudo bem, a terapia vai lhe ajudar nisso. Mas saiba, só é possível mudar o que se tem consciência. 

Muitos mal-entendidos se resolvem apenas alinhando sua emoção ao seu discurso e a sua ação. Não canso de repetir: a gente sofre, basicamente, por falhas na comunicação.

Chico Buarque, na música Minha História, diz “mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher, me ninava cantando cantigas de cabaré.”

E é possível que o personagem se sentisse muito amado, e tivesse lindos sonhos.

É a entonação fazendo a diferença.

2 comentários:

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