domingo, 17 de julho de 2016

Mas pode?!?!?

Érima de Andrade

Quando eu ainda era aluna na Escola de Belas Artes, da UFRJ, e comecei a usar tinta a óleo, aprendi uma lição que levo para sempre e que me ajuda muito no consultório.

Na escola aprendíamos várias técnicas e exercitávamos em casa. Em casa, eu estava pintando e não estava conseguindo o resultado que eu desejava.
Pensei alto, sem nem perceber que tinha gente por perto: que vontade de pintar com o dedo.

Nem me lembro o que eu pintava, mas é inesquecível a reação da sogra da minha irmã, dona Eridan, que respondeu de bate-pronto: “se está com vontade, usa o dedo.”

Tão inesquecível como a frase foram as minhas sensações. Mas pode?!?!? – pensei, e senti despertar em mim um sentimento de traição, desonestidade, trapaça. Ao mesmo tempo um pensamento de: é claro, é o meu trabalho, posso fazê-lo como eu quiser.

Foi transformador! Era lógico, eu podia fazer como eu achasse melhor. As técnicas são apenas uma base, raízes fortes e saudáveis que nos permitem voar em segurança. Que sensação boa eu senti com essa compreensão.

É essa sensação que busco despertar nas pessoas que conversam comigo, e de repente perguntam: “Mas pode?!?!?”

Pode. Tudo pode, desde que você se responsabilize pelo que está fazendo e pelas consequências dos seus atos.

Essa semana aconteceu de novo. Conversando com quatro estudantes de terapia ocupacional, sobre atividades, surgiu a pergunta: “Mas pode?!?!?”. Assim mesmo, com espanto e incredulidade.

Pode sim. Vamos pensar juntos?

- Quando pensou na atividade você levou em conta a rotina, as dificuldades e as capacidades do paciente? Sim!

- A atividade que você quer propor coloca o paciente em risco? Coloca em risco a equipe? Coloca em risco o espaço? Não!

- Quando fez a análise da atividade, confirmou que estava de acordo com seus objetivos de tratamento? Sim!

- Você acredita que essa atividade contribui para o plano de tratamento e que o paciente terá ganhos com ela? Sim!

- Você tem conhecimento suficiente para oferecer essa atividade? Sim!

- Você fica confortável oferecendo essa atividade ao paciente?

É preciso pensar a respeito.

Falávamos da pintura com tinta a óleo. Se o terapeuta se incomoda com o cheiro; se fica tenso com a possível sujeira da atividade; se fica aflito com as experiências com a tinta feitas pelo paciente; se fica ansioso durante a atividade, vale pensar se compensa mesmo insistir em oferecê-la.

Não é a atividade que trata o paciente, é a relação terapêutica. E se o terapeuta não está à vontade, esse sentimento vai com certeza contaminar a relação.

"Não sabendo que era impossível, foi lá e fez" Jean Cocteau. 

Terapeutas ocupacionais são especialistas em fazer o impossível. Quando fazemos a análise da atividade descobrimos soluções em etapas que vão impactar positivamente o todo. Na minha opinião é o que temos de mais legal, o olhar treinado para análise de atividades. E com esse treino, fazemos o impossível.

E sim, tem muitas outras atividades que beneficiam o paciente, você não precisa ficar desconfortável.

Não é só em conversas com estudantes que surge a sensação: “mas pode?!?!?” Em muitas outras oportunidades é possível levar a compreensão de que pode tudo, sempre.

Lembro especialmente de uma paciente que me confessou que gostaria muito de meditar. Mas isso é fácil, podemos fazer alguns exercícios. Resposta dela: “Na minha religião não tem meditação. ”

Hum... está bem, vamos conversar.

A meditação fortalece a sua espiritualidade, e espiritualidade e religião não são a mesma coisa.

A espiritualidade possibilita a conexão com o seu melhor. É uma conexão interna, de você com você mesmo, com sua melhor parte, com sua luz, com sua sabedoria. É uma conexão totalmente pessoal.

A religião é uma conexão externa, com ritos, cultos, regras, estudos e caminhos comuns a todos da mesma crença. É comunitária.

A religião é uma instituição, e a espiritualidade é a vivência. Em qualquer religião você pode viver a espiritualidade. Mas você também pode experimentar a espiritualidade sem ter nenhuma religião.

Muito se diz que a melhor religião é aquela que lhe faz uma pessoa melhor. E pode ser que para isso você agregue práticas e estudos de várias religiões. Mas pode?!?!? 

Com certeza!

E quantos mais caminhos você buscar, mais conhecerá de várias práticas. É justamente esse conhecimento que derruba os muros da intolerância.

A espiritualidade é individual, respeite. A religião é uma escolha por afinidade. Respeite.

“Construímos muros demais e pontes de menos. ” Isaac Newton. 

Hora de virar o jogo e construir mais pontes na sua prática diária.

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