domingo, 7 de junho de 2015

Ser feliz ou ter razão?

Érima de Andrade

De vez em quando encontro com pessoas que sofrem, mas se recusam a ceder. Para elas a resposta à pergunta,  
ser feliz ou ter razão, é sem dúvidas ter razão. Ficam presas a um episódio da própria vida apenas para ter razão, sem perceber que, nesse caso, o vigia é tão prisioneiro quanto o vigiado.

E seguem teimando numa disputa que não permite vencedores.

A vida toda passa a girar em torno desse entrave. Isso me fez lembrar uma crônica do Luiz Fernando Veríssimo publicada na Revista do Jornal do Brasil, há uns 20 anos pelo menos. Claro que eu não tenho mais a revista, mas como a internet facilita muito qualquer pesquisa, consegui achar o texto e trouxe aqui para o blog. Ilustra bem como a vida passa a girar em torno de um episódio que tinha tudo para ser insignificante.

Boa leitura!

"O jogo", por 
Luiz Fernando Veríssimo 

"― Nicou.
― Não nicou.
― Nicou!
― Não nicou!

Atracaram-se. Rolaram pelo chão. Eram vizinhos. Os dois com oito anos. Xingavam-se aos gritos.

― Filho disto!

― Filho daquilo!

As duas mães citadas correram para ver o que estava acontecendo. Separaram os dois, que choravam de dor e de raiva. As mães tiveram que segurar os dois com força e levá-los, cada um para a sua casa. Senão a briga recomeçava.


― Nicou!
― Não nicou!

Nunca mais jogaram bola de gude. Nunca mais brincaram juntos. Quando um deles mudou de casa, botou a cabeça para fora do carro e gritou para o que ficava.

― Nicou!

O outro não teve tempo de responder. Mas fez um gesto expressivo. Nicou aqui, ó!

Reencontraram-se anos depois, por coincidência, no ginásio. Encararam-se, meio sem jeito. Mas não se falaram. No fim do ano, um tinha tirado o primeiro lugar da turma e o outro, o segundo. No ano seguinte, foi o contrário. Disputaram a presidência do grêmio estudantil. Foi uma campanha violenta, com ataques pessoais. Entrou mãe no meio. Houve acusações mútuas de desonestidade no jogo, o que ninguém entendeu. O derrotado fundou um grêmio dissidente. Cada um entrou para um cursinho pré-vestibular. Os cursinhos brigaram, pela imprensa, sobre qual dos dois fizera o melhor vestibular na cidade. Entraram os dois para a Engenharia.

Um casou com a segunda fortuna do país. A notícia saiu em todas as colunas sociais. O outro casou com a terceira fortuna do país. Saiu matéria paga em todas as revistas nacionais. 

O primeiro edifício construído pelo primeiro se chamava Nico. O segundo construiu um edifício de cinco andares chamado Nonico. 

Um teve um filho. O outro teve gêmeos. Um foi morar num apartamento de cobertura. O outro comprou a cobertura do lado, um andar mais alto, e mandou colocar uma faixa no lado do prédio, virada para a cobertura do outro. Na faixa havia só uma palavra. Nicou. 

O outro comprou o edifício ao lado, despejou o vizinho da sua cobertura, destruiu o edifício, ergueu outro em seu lugar, com o gabarito máximo, e foi morar na cobertura. Nos mesmos jornais que anunciavam a inauguração do novo prédio apareceu um misterioso anúncio de página inteira que dizia o seguinte: “Está certo. Mas nicou”.

Quando um construiu um edifício de 36 andares, o outro construiu um de 40. Um anunciou o lançamento do maior empreendimento imobiliário do continente, o Brazilian Golden Palace Tower Suites, edifícios de 80 andares na Rio-Santos com vista para o mar. O outro criticou publicamente a construção de espigões na área e o uso absurdo de nomes em inglês e anunciou a construção, ao lado, de edifícios de 82 andares, Lês Jardins Plein Soleil sur la Mer.

Um construía um edifício, o outro construía dois. Um destruía um marco histórico ou uma casa antiga, o outro destruía um quarteirão. Lideravam grupos sociais rivais. Um organizou a Festa do Pavão Deslumbrado, no Iate. O outro organizou a Noite das Línguas Afiadas para comentar o fracasso da festa do primeiro, no Country. Um fechou o Regine’s com o seu grupo e foi notícia nacional. O outro fechou a Regine na Avenida Atlântica com o seu carro e foi notícia internacional. 

Um viu-se envolvido na falência fraudulenta do seu grupo imobiliário. Dias depois, o outro também era citado na concordata do seu grupo e fazia questão de dizer que a sua dívida era maior. Ambos foram socorridos pelo Governo. Um comprou um barco com piscina, cinema, sauna e adega climatizada. O outro comprou um avião a jato com cama redonda.

Um decidiu retirar-se da vida empresarial e dedicar-se à arte. O outro também anunciou que renunciava aos grandes negócios e se tornava um patrono da cultura. Para começar, fundou uma revista de crítica de arte.

Um inventou a arte monumental. Seu primeiro trabalho foi um gigantesco obelisco de isopor. (“Simbolizando”, disse a revista do outro, “o que o artista tem na cabeça: absolutamente nada”). A seguir, desapropriou e arrasou uma grande área urbana para erguer uma estranha escultura, grandes bolas pintadas como bolas de gude, sendo que duas das bolas se tocavam. Chamou a escultura de A Grande Nicada.

Todo o número seguinte da revista do outro foi dedicado a essa obra insana de uma mente doentia que envergonha a inteligência nacional, além de ser mentirosa. “A Grande Nicada é um embuste!” Houve um grande debate em todo o país sobre a validade ou não e as implicações sociopolíticas da arte monumental a partir de A Grande Nicada, mas o artista recusou-se entrar no debate.

Não responderia aos seus críticos. Convidou autoridades e personalidades para um cruzeiro no seu iate, durante o qual seria inaugurada a sua obra mais recente. Tinha comprado uma ilha no Oceano Atlântico. Na praia colocara uma tabuleta, A Ilha. Com a sua assinatura embaixo.

Todos a bordo do iate comentavam a engenhosidade do artista quando tiveram sua atenção atraída para um avião que sobrevoava a ilha, soltando fumaça branca. Era o avião do outro, que escrevia no céu, de horizonte a horizonte: “Que bobagem!” Mas o outro estava preparado. A uma ordem sua, a cúpula do jardim de inverno do iate abriu-se, revelando a existência de um canhão antiaéreo. O avião do outro foi derrubado. Mas antes de mergulhar no mar, escreveu com fumaça no céu: “Não nicou.”

O outro, desesperado, afundou o próprio iate. E naufragou jun
to com os convidados, que não entendiam mais nada, gritando: “Nicou! Nicou!”"Luiz Fernando Veríssimo 

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